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05 DE AGOSTO DE 2024
Artigo – O abandono afetivo e a mudança do sobrenome
Quando um genitor decide abandonar o filho, desencadeia neste uma série de eventos que podem causar traumas de ordem psíquica, moral e legal. Afinal, a pessoa abandonada deve ser obrigada a permanecer utilizando o sobrenome ou nome da família de quem o abandonou?
Até recentemente, o princípio da imutabilidade do prenome ou do nome de família vigorou rigidamente no País, sem que se considerasse a dor que o abandono causou à pessoa abandonada.
Porém, esta regra está sendo flexibilizada.
A Constituição, em seu artigo 227, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 4º, atribui aos pais o dever de zelar pelos filhos, dando-lhes apoio material e moral necessários para que se desenvolvam plenamente. Quando o genitor decide “abandonar a prole”, sem atender as necessidades pessoais e materiais dos filhos, pratica o ato de abandono afetivo.
O abandono afetivo traz para o abandonado uma série de consequências, sendo uma das mais visíveis a não identificação com o prenome ou nome familiar de quem o abandonou, gerando toda a discussão: seria possível a retirada do sobrenome daquele que agiu errado com sua prole?
Até recentemente, vigorava a regra da imutabilidade do prenome, sobrenome ou nome de família de quem abandonava os filhos, a proteção aos interesses da sociedade era superior aos interesses de quem tinha sido abandonado.
O princípio da imutabilidade tem por objetivo garantir a segurança jurídica e a estabilidade dos atos da vida civil: “O prenome, como elemento constitutivo do nome, individualiza a pessoa no seio da sociedade e, se fosse possível a sua alteração ao talante da pessoa concernente, haveria grave risco de dano aos negócios e interesses de terceiros”[1].
Ao mesmo tempo, o sobrenome tem o condão de individualizar e dar identidade social a pessoa, permitindo que ela se destaque dos demais. Neste sentido, a mestra Maria Berenice Dias ensina:
“O nome é um dos direitos mais essenciais da personalidade e goza de todas essas prerrogativas. À luz da psicanálise, o nome não retrata só a identidade social, mas, principalmente, a subjetiva, permitindo que a pessoa se reconheça enquanto sujeito e se identifique jurídica e socialmente. Trata-se de um bem jurídico que tutela a intimidade e permite a individualização da pessoa, merecendo proteção do ordenamento jurídico de forma ampla. Assim, o nome dispõe de um valor que se insere no conceito de dignidade da pessoa humana.”
Tribunais têm facilitando alteração
Com base nestes entendimentos, os tribunais brasileiros têm flexibilizado a regra da imutabilidade e permitido a alteração e/ou exclusão do nome familiar daquele que agiu de forma indigna contra os filhos.
Neste sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo apresenta um rol de decisões favoráveis à mudança de nome com fundamento no abandono afetivo e material, onde pode se destacar:
“APELAÇÃO. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. Propositura pelo filho maior de idade. Pretensão de supressão do patronímico paterno. Alegação de abandono afetivo e material. Sentença de improcedência, entendendo ausentes elementos suficientes a configurar o direito invocado. Inconformismo do autor. Peculiaridades do caso em debate. Existência de relevante motivo social para a alteração do nome. Evidências suficientes de abandono material e afetivo, consoante documentação acostada aos autos, confirmando as alegações do autor. Circunstância corroborada, ainda, pela revelia do genitor (citado pessoalmente), demonstrando o respectivo desinteresse em relação ao filho. Existência de diversas ações de execução de alimentos aptas a demonstrar que o requerido não cooperou, ao longo dos anos, para o sustento ou desenvolvimento do filho, criado exclusivamente pela genitora e pelos avós maternos. Efetivo peso emocional e psicológico suportado pelo filho em razão do sobrenome paterno. Ausência de evidência de dolo, má-fé ou fraude. Aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana a flexibilizar o princípio da imutabilidade do nome, conforme precedente do Superior Tribunal de Justiça e jurisprudência deste Egrégio Tribunal de Justiça, incluindo precedente desta Colenda 10a Câmara de Direito Privado. Ascendência paterna e direitos sucessórios continuam inalterados, restando preservados. Sentença reformada. RECURSO PROVIDO” (TJSP; Apelação Cível 1001848-51.2018.8.26.0009; Relator (a): Silvia Maria Facchina Esposito Martinez; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional IX – Vila Prudente – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 30/09/2020; Data de Registro: 30/09/2020);
A decisão pontua que várias tentativas foram tomadas na busca de se levar o genitor a honrar com seu dever paterno, mas este se recusou. Sendo cabível, portanto, a exclusão do sobrenome do genitor. Porém, como de regra, os direitos sucessórios e a ascendência paterna permaneceram inalterados.
Em outra decisão, o julgador a quo destacou que “é evidente, no relato dos autos, que o patronímico paterno causa desconforto ao autor, que não se sente ligado ao pai e não gostaria de levar consigo o patronímico de alguém que, em sua ótica, não contribuiu com seu crescimento pessoal”
É possível concluir que a regra da imutabilidade sofre mitigações quando em confronto com o abandono afetivo, abrindo a possibilidade do abandonado restabelecer a sua dignidade pessoal através da exclusão do nome daquele que lhe tratou com indiferença. Pois se amar é uma possibilidade, suportar as dores do abandono não precisa ser um fardo, sendo possível reescrever uma história a partir da mudança do sobrenome, prenome ou nome da família.
LUIZ GUILHERME LOUREIRO, Registros Públicos, Teoria e Prática, 4ª Ed., Método, p. 64/65.
Manual de Direito de Famílias, 10ª ed., 2015, p. 112
Processo nº: 1098330-74.2021.8.26.0100
Cláudia Mara Serafim Batiston: é advogada, com especialização em Direito Civil, Processo Civil (Faculdade Legale) e Propriedade Intelectual (Escola Superior de Advocacia – SP), e perita judicial no Tribunal de Justiça de São Paulo.
Fonte: Conjur
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